10 de março de 2012

Menino do Rio

O mais novo professor da Escola de Teatro da UFBA, o carioca Sérgio Melo, fala de sua trajetória como artista, defende a necessidade da disciplina no teatro e expõe sua visão sobre a arte baiana.

[A reprodução deste texto por outros veículos é permitida, desde que haja a inclusão do crédito de fonte:Hilda Lopes Pontes/ABAN]

Por Hilda Lopes Pontes

Arrancando sorrisos dos colegas de classe do curso de filosofia da UFRJ, Sérgio Melo percebeu o quanto gostava de fazer graça, de ser um “palhaço”. Após essa motivação inicial, além de ler numa das obras de Sartre que a “liberdade nos demanda fazer escolhas”, decidiu trancar a faculdade e fazer um curso preparatório de teatro na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Seu primeiro contato com o drama foi assistindo espetáculos feitos para televisão. Uma peça de Eugène Ionesco com Paulo José, ator que o inspirou em sua jornada como intérprete.

Os pais portugueses desejavam que o filho não perdesse sua cultura natal. Ele era o que podemos chamar de um nerd. Passava os dias na companhia de livros, discos e se tornou um cinéfilo inveterado desde a adolescência. Mergulhava no universo da fantasia, da ilusão.

Sérgio Melo acredita num trabalho de ator sempre com disciplina, suor e muitas vezes sacrifício. Para ele, o processo criativo deve ser escolhido a partir da demanda de cada espetáculo. O necessário é um grupo de pessoas unidas por um objetivo em comum. Por esta razão, crê que o teatro feito hoje está morto. “É um cadáver que não dá frutos. Através das mesmas lentes com que enxergo o teatro do Rio, de Toronto, de Londres ou de Nova York: a cultura teatral mundial é feita, em sua maior parte, de teatro defunto”, afirma. O professor vê nos jovens artistas a esperança de novidades no cenário atual.

Considera seu trabalho como docente uma vocação que já está em seu DNA. Vê-se no papel de transmissor de conhecimento. Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), passou seis anos na Rede Globo de Televisão, sendo roteirista de programas infantis como “Bambuluá”. Mas, depois de concluir um mestrado, a sede de conhecimento o fez demitir-se do emprego e passar seis anos no Canadá fazendo doutorado em Artes Cênicas. Tenta ser honesto e sincero com os alunos e não impõe suas crenças em sala de aula. Ainda assim, percebeu que esta não é a melhor estratégia para ele. “Daqui em diante, procurarei deixar claro para os alunos que aulas de teatro não devem ser confundidas com recreação – o que não significa que não possam ser divertidas”, afirma.

Poderia ter sido pai em Viena, mas se considera um homem “de coração náufrago” e por saber disso evitou prender-se em lugares no mundo. Além do mais, acredita que o planeta já está superpopulado, se tivesse filhos estaria contribuindo para a destruição da Terra. Recém-chegado em Salvador, já tem algumas pessoas a quem pode chamar de amigos, porém destaca que nenhuma com a qual possa chorar no ombro ainda. São novos colegas e amizades, indivíduos com quem pode compartilhar bons momentos. Sérgio Melo fala abertamente sobre sua vida, bastante até. Mas, ainda assim, não há como saber o que realmente passa por sua mente enquanto discursa com um fervor tímido e ajeita os óculos.

Jean-Paul Sartre (1905-1980) filósofo existencialista

HILDA LOPES PONTES - Em que momento de sua vida, você decidiu trabalhar com teatro?
SÉRGIO MELO - Por um lado, acredito que todos nós que estamos nessa estrada já viemos predispostos a isso. Metafísica da vocação: o "começo que não começa" de que fala Heráclito de Éfeso. Por outro lado, paradoxalmente, se a gente quiser, dá pra localizar o "momento", como você diz: eu estudava filosofia na UFRJ e, naquela época, era um palhaço, digamos 80% do tempo, adorava fazer graça. Por isso, os meus amigos viviam dizendo que eu era um ator. Estudando Sartre, que discute a importância da responsabilidade num mundo em que a liberdade nos exige escolhas constantemente, tranquei a matrícula de filosofia e fui fazer um curso preparatório de teatro na CAL para seguir uma vocação que se manifestava com mais vigor.

HLP - Quais foram os altos e baixos na sua trajetória como artista?
SM - Primeiramente, devo dizer que os altos da minha trajetória precisam ser relativizados se levarmos em consideração aspectos de status ou de projeção social, já que cedo percebi que o meu capital social, que deve ser alto para quem quer ganhar a vida nessa carreira, estava muito próximo do inegociável. Considerando-se essa relativização, dá pra falar em altos e baixos. Um dos altos foi atuar em Buenos Aires, no Centro Cultural Ricardo Rojas, em plena Avenida Corrientes, para um público que tinha dificuldade em compreender a parte verbal da encenação de um texto pós-dramático co-escrito por mim e Claudia Souto, o “Concerto para pandeiro e orquestra”, trabalho de estreia da nossa companhia, o Teatro Metábole. Foi maravilhoso me certificar de que a peça funcionava visualmente e que podia prescindir do texto. Um prêmio do BANERJ nos permitiu viajar depois da temporada no Rio. Mas o baixo veio logo a seguir quando a companhia decidiu que o cenário, feito de madeira maciça, pesado e caro para transportar, tinha que ficar por falta de verba para o transporte de volta, o que significava o fim do espetáculo, já que o espetáculo não existia sem os módulos que se transformavam e que tinham custado os olhos da cara. As nossas trajetórias têm necessariamente esses vales e montes. Foi com o sentimento de frustração de não poder continuar com o “Concerto...” que resolvi ir à Europa, onde tive a maior gratificação educacional da minha vida na Scuola d'Arte Drammatica Paolo Grassi, a célula originária do Piccolo Teatro di Milano.
Entrada principal do Piccolo Teatro di Milano

HLP - Como foram a sua infância e a sua adolescência?
SM - A minha infância foi, principalmente, a descoberta de que existia uma coisa chamada cultura. Filho de portugueses, tive uma educação bem diversa daquela dos meus vizinhos brasileiros, cujos pais eu admirava pela liberalidade. Cresci no bairro de Vila Isabel, na zona norte do Rio. A contragosto do meu pai, meus irmãos e eu nos misturávamos inevitavelmente com a cultura local. E mesmo que eu zoasse o radicalismo do amor incondicional pelo samba dos meus vizinhos, principalmente pelas escolas de samba, a terra de Noel entrou nas minhas veias e passou a fazer parte de alguém para quem uma nacionalidade é pouco desde sempre. A adolescência foi a consolidação da personalidade de um nerd. Só que, naquela época, obviamente, não existia computador. Eu lia enciclopédias e livros, ouvia LPs e rádio e cumpria os meus deveres escolares com alegria. Foi então que o interesse pelas séries televisivas se expandiu para o cinema e me tornei um cinéfilo. Foi guiado por uma curiosidade completamente individual que, aos 13 anos, encarei sozinho um deslocamento de uma hora de ônibus assistir “A Flauta Mágica”, do Bergman. Foi o começo de uma cinefilia obsessiva, que se acalmou somente nos últimos anos.

HLP - Existem autores e/ou artistas que te inspiraram?
SM - Claro. Todos nós temos. Mais uma vez, se trata do efeito "começo que não começa", porque esses artistas passam a habitar um lugar imaginário por sobre os nossos ombros. Imagino que você também queira que eu cite alguns nomes. Pois bem: Ingmar Bergman, Woody Allen, Nelson Rodrigues, Gerald Thomas, Shakespeare, Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Ana Magnani, Italo Calvino, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Sting... Bem, acho que não temos espaço para todos.

HLP - Como foi seu primeiro contato com teatro?
SM - Foi assistindo teatro feito pela/para a televisão. Lembro perfeitamente do Paulo José (por sinal outro dos meus inspiradores) fazendo Ionesco e do Ziembinski fazendo Gogol. Mas a primeira vez no espaço físico mesmo foi quando um tio meu levou a criançada pra ver “A Onça e o Bode”, que eu "filmei" do início ao fim. E, modéstia muito à parte, o meu primeiro espetáculo adulto foi aos 17 anos, vendo o poderoso “Macunaíma”, do Antunes Filho, que estava no Rio. Logo depois, passei a frequentar o que tinha de melhor no teatro do Rio e, durante o Projeto Mambembe, um festival em que os teatros estatais do Rio recebiam peças de todos os estados do Brasil, eu via tudo o que podia.
Cacilda Becker, Ziembinski, Fredi Kleemann e Walmor Chagas
Foto: Enciclopédia Itaú Cultural

HLP - Já sofreu algum preconceito por trabalhar com teatro?
SM - Certamente, essas charges fotográficas que o pessoal tem postado sobre as carreiras das artes cênicas têm um grande fundo de verdade.

HLP - Existe alguma história curiosa sobre sua vida?
SM - Muitas. Por exemplo, na temporada do “Concerto...” em Buenos Aires, sobre a qual falei antes, um casal de armênios residentes na cidade nos procurou para nos parabenizar e nos convidar a retirar um presente para cada um na loja deles, na Avenida Florida. No meio da conversação, a mulher nos surpreendeu com a afirmação: "vocês têm o fogo sagrado!" A nossa expectativa é de que essas coisas só são ditas por artistas e intelectuais. Mas aqueles comerciantes imigrantes tinham uma fineza de percepção que me gratificava especialmente - de modo que receber um lindo pulôver de lã pura escolhido a dedo para mim foi somente um detalhe de uma dessas ocasiões em que a vida nos presenteia com o inaudito, o maravilhoso.

HLP - Como caracteriza seu processo de criação?
SM - Vai sempre depender do objeto/evento a ser criado. A única regra em comum entre todos é suor.

HLP - Como você enxerga o teatro baiano?
SM - Através das mesmas lentes com que enxergo o teatro do Rio, de Toronto, de Londres ou de Nova York: a cultura teatral mundial é feita, em sua maior parte, de teatro defunto, que não me interessa. Isto dito, respeito tudo o que é bem feito: do besteirol, que vi à exaustão, à performance. Mas sou exigente.  Assim sendo, do teatro baiano, curti, por exemplo, “Uma Vez Nada Mais”, da Hebe Alves, “Meu Nome é Mentira”, do Luiz Marfuz, e um exercício despretensioso de uma turma de Licenciatura III, dirigido pela Maria Eugênia, quando eu estava chegando a Salvador. Curto atores excelentes como a Maria Bela, a Laís Machado, o Alex Barreto e o Fabio Vidal. Estou mirando com interesse particular os jovens artistas que já se encaminham claramente para uma linguagem pessoal, como Diego Pinheiro, Kleia Cardoso e Daniel Guerra.
Cena da série cinematográfica Harry Potter. Foto: divulgação
HLP - Quando e como decidiu ser professor?
SM - Também é uma dessas vocações que está no meu DNA mesmo que eu me considere mais um transmissor de conhecimento do que um professor, no sentido mais convencional da palavra. Aos 18 anos, comecei a ensinar inglês, uma profissão que retomei aqui e ali como um jabá. Quando voltei da Europa, dei o primeiro passo para isso, fazendo vestibular novamente, dessa vez para Letras, porque achava que, dependendo do trabalho, para viver com independência e sendo artista, eu precisava expandir as possibilidades de me inserir no mercado. Formei em 1998, quando já trabalhava para a Globo. Foi somente depois de quatro anos na emissora que quis voltar a estudar, intuindo que a minha personalidade era a de alguém que não se contentaria somente com a carreira de roteirista de TV. Foi em 2003, depois de colar grau de mestre e de ir ao meu primeiro congresso internacional em Istambul, onde apresentei a minha pesquisa sobre Harry Potter, que decidi que precisava expandir mais ainda os meus conhecimentos e que, se o preço a pagar era me demitir da Globo, eu o faria. Com um PhD obtido a preço de me afastar do Brasil por seis anos, ficaria difícil não me tornar professor. E eis-me aqui em Salvador, na profissão com que a minha inquietude e irreverência me presentearam.

HLP - Acredita no teatro brasileiro e no seu futuro?
SM - Claro! Do mesmo modo como acredito no seu presente.

HLP -  Qual sua opinião sobre a maneira que os jovens veem o teatro?
SM - O pacote "jovens" é generico demais. Existem os jovens que querem fazer uma carreira comercial, ponto e basta; existem os jovens que querem se afirmar com um teatro de boa qualidade, independentemente de se tornarem ricos com isso; e existem os que são impelidos por uma paixão tão avassaladora que pensam somente na concretização de uma linguagem, independentemente de sua aceitação no mercado/mundo. Acho que cada um tem o direito de ter a sua própria visão. Todos podem vir a contribuir com excelência para o teatro.

HLP - Tem alguma opinião formada sobre a Escola de Teatro? Se tem, qual?
SM - É uma escola com instalações precaríssimas, mas com um bom espaço cênico (o teatro Martim Gonçalves). Acho, de um modo geral, os alunos demasiadamente indisciplinados. Generalizado, é como se os alunos ignorassem que o sucesso de um curso, de uma universidade etc., não depende somente dos professores, mas sobretudo dos alunos.

HLP - Há uma maneira específica de lidar com seus alunos?
SM - No primeiro semestre, procurei me expressar com muita honestidade, sinceridade e receptividade. Não queria impor a minha cultura à cultura de ninguém. Entendi que, em Salvador, isso não funciona. Portanto, no próximo semestre, pretendo ser bem mais rigoroso porque não quero ser um disciplinador. Disciplina é condição sine qua non para o aprendizado. Os alunos precisam compreender integralmente que, para se produzir no mundo das artes cênicas, é necessário sempre muita (enfatiza) disciplina e frequentemente até sacrifício. Em outras palavras, estou dizendo que, daqui em diante, procurarei deixar claro para os alunos que aulas de teatro não devem ser confundidas com recreação – o que não significa que não possam ser divertidas.
Jerzy Grotowiski (1933-1999) diretor teatral
HLP - Você segue alguma linha ou escola teatral?
SM - Uma mistureba delas, sendo as principais o que aprendi da técnica de Jacques Lecoq, Jerzy Grotowiski, Eugenio Barba, Massimo Navone e Gaetano Sansone. Esses três últimos foram meus instrutores em primeira pessoa. Mas a nossa linha a gente cria e recria a cada novo trabalho de acordo com as suas especificações.

HLP - Como se dá sua relação com sua família?
SM - Tem se dado via meios de comunicação. Os meus sobrinhos se lembram de mim mais através do skype do que ao vivo (risos).

HLP - Algum dia já pensou em casar e/ou ter filhos?
SM - Sim, uma única vez. Se tivesse acontecido, hoje eu poderia estar morando em Viena, pai de uma ou mais crianças austro-brasileiras. Mas não foi vital. O preço de um náufrago de coração responsável (Sartre de novo) é não ter filhos. Além disso, como um ambientalista por diletância, sou daqueles que avisa os outros sobre os problemas de já termos uma superpopulação planetária de mais de sete bilhões de habitantes, que deverá chegar a oito em 2025, o que é assustador!

HLP - Qual a relação que tem com seus amigos? Já estabeleceu amizades em Salvador?
SM - Fazer amigos e mantê-los, para mim, é como respirar: não vivo sem e posso sempre aprender a melhorar. A amizade é uma arte. Quando cheguei a Salvador, não conhecia absolutamente ninguém. Seis meses depois, tenho alguns bons amigos e várias boas consequências do bom humor, isto é, conhecidos, que também constituem uma parte importante da vida. Quero dizer, você não vai chorar nos ombros deles, mas vai sempre compartilhar o riso e as tarefas do dia a dia, além de fiar com eles o tecido social.

HLP - Sente falta do Rio de Janeiro? Em que aspectos?
SM - Claro. O Rio é a cidade mais linda do mundo; tem a maior floresta urbana do mundo; tem montanhas e praias e eventos teatrais, musicais e cinematográficos nacionais e internacionais o tempo todo. É uma cidade com tanta coisa para fazer que se torna cruelmente dispersiva: é muito chope no barzinho, muita praia, muito ensaio das escolas de samba, enfim... Mas é, apesar de toda a injustiça social inerente, uma cidade hospitaleira e simpática.

HLP -  Você morou em diversas cidades e países, de que maneira isso o influenciou?
SM - Retorno à infância. Sou um ser multicultural nato. Sou capaz de me adaptar a culturas diferentes. Falar línguas diferentes a ponto de não ser percebido como um estrangeiro, penso, é o máximo que se pode mergulhar em uma cultura. Em relação às artes cênicas, essas experiências equivalem a ter vivido papéis muito diversos. Também representei em outras línguas, principalmente em inglês, porque atuei em três peças no Canadá. Apesar de cada trabalho ser um novo desafio, a vivência da "esquizofrenia" (no bom sentido) internacional me ajuda a movimentar a perspectiva panorâmica.

HLP - Quais seus planos para o futuro?
SM - Continuar me surpreendendo.

Um comentário:

  1. Ótima entrevista!
    Muito bem conduzida. E completa!
    É sempre bom saber, principalmente pra gente que tá entrando agora também, a visão de um professor que nós já tivemos a oportunidade de conhecer (na banca). Compreender suas percepções sobre teatro e vida e entender como chegou até isso.
    Mesmo possuindo a mente indecifrável, como bem disse Hilda no corpo do texto, creio que todos nós estamos nos sentindo mais próximos e conhecedores de Sérgio.
    Logo, Hilda foi muito bem-sucedida com a entrevista. De fato, um perfil! Parabéns! ^^

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