A produtora, jornalista e professora Deolinda Vilhena fala sobre os anos de trabalho com Bibi Ferreira, as pesquisas sobre o Théâtre du Soleil e a opção por ensinar numa universidade baiana.
[A reprodução deste texto por outros veículos é permitida, desde que haja a inclusão do crédito de fonte:Hilda Lopes Pontes/ABAN]
Por
Hilda Lopes Pontes
Fotos: arquivo pessoal |
DECIDIU
que sua carreira seria no teatro quando assistiu Bibi Ferreira pela primeira
vez em “O Homem de La Mancha”. Desde esse dia, sonhava em trabalhar com a
atriz. E conseguiu nove anos depois. A história começou quando Deolinda era
assessora de imprensa e produtora de Clara Nunes, que foi dirigida por Bibi no
“Clara Mestiça Show”. Após a morte da cantora, foi trabalhar com seu ídolo e
considera que esta foi a maior experiência profissional de sua vida. “Trabalhei por quase 17 anos como assessora de
imprensa, produtora, secretária de frente e até camareira da Bibi”, comenta. É
formada em Jornalismo e considera que essa é a sua profissão de fato, apesar de
ter trabalhado por 21 anos unindo produção, administração teatral e assessoria
de imprensa.
ACREDITA
que o teatro da Bahia gira em torno dele mesmo em demasia. Defende a realização
dos festivais que fazem o intercâmbio entre a cidade e o mundo. “É preciso uma overdose de teatro para fazer um bom
teatro”, comenta.
PASSAR o conhecimento adiante. Essa é forma que Deolinda
encontrou para continuar aprendendo e não deixou o seu saber cristalizar-se até
sentir que sua inteligência havia escapado por falta de uso. Do momento em que
decidiu lecionar até o dia em que passou para ser professora da UFBA foram nove
anos, incluindo dois mestrados e um doutorado. Nesse período pesquisou sobre o Théâtre du Soleil. Em
seguida, fez pós-doutorado e após essa jornada, passou três anos lecionando na Universidade
de São Paulo (USP). Finalmente viu que havia uma vaga para professor na Escola
de Teatro da UFBA, se inscreveu, passou e leciona na Escola desde o segundo
semestre de 2011.
SEMPRE
sorridente e cheia de projetos, Deolinda se reveza
entre as aulas e viagens, escreve a coluna Patchwork Cultural no Terra Magazine e
muito mais. Mas nunca deixa de ouvir um aluno com dúvidas, parece que sempre há
tempo de encaixar mais uma atividade em sua vida, tanto acadêmica quanto
pessoal.
Deolinda Vilhena - Minha
primeira infância foi vivida em Belém do Pará onde nasci e, muito
provavelmente, se não houvesse um golpe militar no Brasil em 1964 meu pai não
teria saído de lá... Depois foram muitas andanças pelo litoral e interior de
São Paulo: São Vicente, Santos, Andradina, Ilha Solteira... Filha de um
engenheiro, trabalhando ora em siderurgia, ora na construção de usinas
hidrelétricas, as mudanças fizeram parte da minha vida. Talvez por isso eu
tenha um espírito cigano e seja uma cidadã do mundo... Infância no interior nos
anos 1960 e 70 era tudo de bom. Muito banho de rio, muita brincadeira de
moleque, muito correr na rua, andar de bicicleta e agendar briga no campo de
futebol mais próximo quando me contrariavam ou cometiam alguma injustiça, algo
imperdoável para uma libriana com Xangô na cabeça...
H- Como foi que o teatro entrou em sua vida?
D - Descobri
o teatro graças à minha mãe, uma atriz frustrada... E morando em Ilha Solteira
descobri minha vocação para produtora, mesmo sem saber o que isso significava.
Num palco improvisado, com direito à cortina e camarins, produzia espetáculos
com textos meus e músicas dos grandes do mundo. Na minha casa fomos educados
para ouvir música, meu pai é filho de maestro e dono de um gosto musical
requintado. Como não herdei o talento musical, mesmo sem pagar ao ECAD, usava
como trilha as mais belas canções que uma criança de dez anos poderia
conhecer... Eu era a autora, a diretora e a produtora. Minha irmã Patrícia e
meu irmão Paulo, meus atores e assistentes de produção. Sem falar nas primas
Denise, Cristina e Maria Tereza, que completavam a equipe. Os ingressos eram
vendidos de casa em casa, saía de bicicleta vendendo para os filhos dos
vizinhos, e no dia das apresentações, nas tardes de sábado e domingo,
incrementava as receitas vendendo ki-suco, pipoca, brigadeiro etc. preparados
pelas secretárias da casa. Depois repartia a receita entre todos os envolvidos,
nem sempre nas mesmas proporções, meu irmão caçula sempre ganhou menos, era o
único homem da turma, ou seja, desde pequena nunca dei chance ao machismo... Mas
o teatro entrou mesmo para minha vida quando assisti, em 1972, uma peça chamada
“O Homem de la Mancha”, com Bibi Ferreira, Paulo Autran e Grande Othelo, sob a
direção de Flávio Rangel. Ao sair do teatro comuniquei aos meus pais: vou fazer
teatro para trabalhar com esta mulher! Esta mulher era Bibi Ferreira. E nove
anos depois eu estava trabalhando com ela...
H - Como foi trabalhar com a Bibi Ferreira?
Paulo Autran e Bibi Ferreira em "O Homem de La Mancha" |
D - Passei nove anos, desde o dia em que a vi pela primeira vez em cena, traçando uma estratégia para chegar até ela... Vi 17 vezes a “Gota d'água”, me jogue aos seus pés quando a vi nas ruas de Copacabana, onde ela morava com Paulo Pontes. Foi graças a Clara Nunes que cheguei a Bibi Ferreira. Bibi foi a herança que Clara me deixou, pois era sua assessora de imprensa e produtora, quando Bibi dirigiu “Clara Mestiça”, show concebido e apresentado durante o ano de 1981. Com a morte prematura de Clara fui trabalhar com Bibi e isso foi a maior experiência profissional da minha vida, galguei cada degrau até ser sua produtora. Bibi sabe tudo de teatro, são 71 anos de palco e quase 90 anos - que ela comemora dia 1º de junho próximo - de uma vida dedicada ao teatro. E depois de ter rodado o mundo e ter visto em cena pelos palcos da vida atrizes das mais diversas gerações e de quilates variados como Jeanne Moreau, Fanny Ardant, Claudia Cardinalle, Shirley MacLaine, Dulcina de Moraes, Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Juliana Carneiro da Cunha, Nathalia Timberg, Mariana Lima e tantas outras, confesso que nunca, jamais vi em cena uma atriz maior do que Bibi Ferreira.
H – Por que decidiu conciliar o jornalismo e o teatro?
D - Queria fazer teatro, mas meu pai jamais pagaria um a faculdade ou me sustentaria para que eu fizesse. Como sempre gostei muito de ler e de escrever – desde os 12 anos tive um jornal no colégio – o jornalismo era uma boa opção. Meu pai me queria engenheira, minha mãe, advogada... eu queria ser produtora de teatro, mas um desvio pelo jornalismo poderia ser interessante. Em 1977 entrei na Faculdade de Jornalismo e em 1978 na Faculdade de Teatro, na antiga Fefierj, hoje Unirio, no mítico prédio da Praia do Flamengo, antiga sede da UNE. Durante um ano cursei as duas faculdades e tinha dois empregos já em teatro. Já a caminho do terceiro ano de jornalismo, e com emprego garantido em teatro, desisti da faculdade de teatro para concluir a graduação em jornalismo. Mas durante 21 anos trabalhei unindo produção e administração teatral à assessoria de imprensa. E quando me perguntam qual é minha profissão respondo de imediato: jornalista. É o que sou na essência.
Entrei para o teatro pela
porta da frente. Meu primeiro trabalho foi na Companhia Maria Della Costa. Quem
me fez produtora foi um dos maiores produtores desse país, Sandro Polloni. Sou
a última produtora da sua última "fornada". Nunca fiz teatro amador ou
estudantil, comecei na cour dos
grandes. Depois emendei um trabalho no outro, exercendo as mais diversas
funções: de assistente de produção a produtora, de administradora a produtora
de viagens, de assessora de imprensa a bilheteira... Fiz de tudo um pouco, e
trabalhei com os maiores nomes do teatro brasileiro: Rosamaria Murtinho, Beyla
Genauer, Cecil Thiré, Tônia Carrerro, Nathalia Timberg, Paulo Gracindo, Paulo
Goulart, Nicette Bruno, Dias Gomes, Ítalo Rossi, Miguel Falabella, José Wilker,
Fernanda Montenegro.
H- O que o teatro baiano precisa hoje?
D - Ser menos incestuoso.
A única coisa capaz de renovar o teatro hoje, no mundo e não apenas na Bahia, é
o olhar do outro. Não se trata de achar que os outros devem chegar aqui para
ensinar os baianos a fazer teatro, mas de compreender que vivemos num mundo
globalizado. O "estrangeiro" nem sempre é um colonizador, na maioria
dos casos é um parceiro. Sinto em Salvador uma vontade de reserva de mercado
que não cabe num mundo onde, ao menos na área cultural, as fronteiras devem ser
abolidas. Igor Vólguin afirma, num texto sobre Dostoievski, que o isolamento do
mundo reduz qualquer povo à posição de “pequeno” e o retira do processo
histórico universal. Uma nação, assim como um indivíduo particular, não pode entender
a si mesma sem a interação com o outro. Uma cultura nacional que se fecha em si
mesmo está condenada à decadência e ao desaparecimento. Por isso rendam loas ao
FIAC, ao FILTE, ao Vivadança, festivais que trazem para Salvador espetáculos
que muitos do que aqui moram jamais teriam oportunidade de ver. Vejam tudo. Até
para descobrir que nem tudo o que vem de fora é bom. Com o que é ruim também se
aprende. Não acredito em quem faz teatro sem ver teatro. É preciso uma overdose
de teatro para se fazer um bom teatro, como para escrever bem é preciso ler
muito, não conheço um grande autor que não fosse um leitor compulsivo.
H - Como foi que decidiu lecionar?
D - Estava me aproximando
dos 40 anos e depois de mais de 20 anos de profissão estava cansada de andar
por esse país e, mais do que isso, tinha a sensação de estar emburrecendo. E
decidi então dividir com os mais jovens aquilo que aprendi na prática. E
lecionar se apresentou como a solução ideal.
H - Como foi sua trajetória para se
tornar professora da Escola de Teatro?
D - Precisei primeiro
aprender uma outra língua (francês) para poder me candidatar a um Mestrado na
Escola de Comunicações e Artes da USP. Aprovada no Mestrado, onde sob a
orientação de Fausto Fuser escrevi uma dissertação intitulada “Bibi Ferreira - A trajetória solitária de
uma atriz por seis décadas do teatro brasileiro”, comecei a preparar o
Doutorado em Estudos Teatrais na Université de la Sorbonne Nouvelle - Paris 3,
sob a orientação de Jean-Pierre Ryngaert. Mas Jean-Pierre colocou uma condição
para me aceitar como orientanda: que eu fizesse um novo mestrado na França. O
que fiz sem problema algum, escrevendo uma dissertação intitulada “Les modes de production au Théâtre du Soleil
- L'évolution de l'utopie”, concluída em setembro de 2002. Na sequência fiz
o doutorado, que resultou na tese “Les
modes de production au Théâtre du Soleil à l'aune de la production théâtrale
française depuis 1968: une exceptin dans l'exception culturelle?” Defendida
a tese em janeiro de 2007. Bolsista da CAPES que era, preparei a volta ao
Brasil e logo emendei com um pós-doutorado como bolsista da FAPESP sob a tutoria
de Sílvia Fernandes, com direito a um estágio pós-doutoral na Université de
Paris Ouest Nanterre-La Défense, com Emmanuel Wallon. Graças a isso lecionei
por três anos na USP, encontrando tempo ainda para fazer uma especialização em “Financiamento e economia da cultura” na
Université Paris Dauphine. Ao voltar de Dauphine soube do concurso na Escola de
Teatro da UFBA e, em menos de 72 horas, preparei a documentação necessária para
conseguir me inscrever. Passei três noites sem dormir para escrever o memorial
e para imprimir os documentos comprobatórios do meu currículo, mas o resultado
foi positivo e cá estou eu professora adjunta da Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia desde o dia 29 de junho de 2011. Boa filha de um
Pedro Paulo, e mãe de outro Pedro Paulo, tomei posse no dia de São Pedro e São
Paulo.
H - De qual maneira se deu sua experiência com o
Théâtre du Soleil?
D - Ao chegar em Paris meu orientador, Jean-Pierre
Ryngaert, me perguntou se eu sabia que era muito mais fácil entrar numa
universidade na França do que no Théâtre du Soleil. Não me deixei abater e
disse que tinha um encontro marcado com Ariane Mnouchkine para o dia seguinte.
E minha chegada ao Soleil foi abençoada desde quando Ariane me autorizou o
acesso aos arquivos e à vida da companhia para realizar a minha pesquisa.
Gozava de um estatuto especial de pesquisadora, um dos atores dizia que eu era
uma espécie de fantasminha camarada, porque estava sempre por lá, ninguém sabia
exatamente porque ou fazendo o quê, mas sem jamais incomodar.
H - Você tem uma forma específica de
lidar com os alunos?
D - Minha experiência
enquanto aluna na França me marcou para sempre. Lá se chama um professor de
Monsieur le Professeur, Senhor Professor. Gosto desse respeito e não assumo a
função de mãe - tenho aversão ao paternalismo que existe em muitas relações
professor-aluno. Pai é pai, mãe é mãe e professor é professor. Minha maior
preocupação é contribuir para a formação de um cidadão, um ser pensante, capaz
de se transformar em protagonista da sua própria vida. E para que isso aconteça
só há duas soluções: muito estudo e muito trabalho.
H - O que você diria para aqueles que estão
começando?
D - Há uma frase do
Gerald Thomas, respondendo a uma pergunta de Paul Heritage, sobre que conselho
daria para a formação de um jovem diretor, ele respondeu: “saia do confinamento de sua província, da sua língua e da sua
identidade cultural e nacional”. É mais ou menos o que digo diariamente aos
que me pedem algum conselho. Acrescento uma outra coisa, não acredite em
talento, conheço inúmeros gênios que se perderam pelo caminho. Um bom
profissional é feito de muito, muito estudo; muito, muito, muito trabalho ...e
um pouquinho de sorte!
H - Qual foi a sua primeira impressão da Escola de
Teatro?
D - Eu conheci a Escola
de Teatro graças ao meu amigo - e agora também colega - Armindo Bião, em 1996,
quando vim a Salvador com Bibi Ferreira para a festa do Troféu Bahia Aplaude,
dirigida por ele. Depois disso conheci outros professores, mas foi em 1999,
quando produzi o primeiro congresso da ABRACE, na Escola de Comunicações e
Artes da USP, que compreendi a importância dessa Escola. Ao chegar aqui, o que
me fascinou em primeiro lugar foi a beleza do Solar Santo Antônio e, ao me
inteirar um pouquinho sobre a história da instituição, foi a força da sua
presença na cidade de Salvador e a intensa produção dos seus
professores-artistas e alunos-artistas. Para uma produtora, nada interessa mais
do que a capacidade de produção. E a Escola é um centro produtor, ainda que não
tenhamos – ainda – um Núcleo de Produção.
Parabéns pela matéria/entrevista, Hilda. Deolinda é umas das pessoas mais cultas, inteligentes, generosas e adoráveis que conheço nessa nossa área teatral, além do fato de conservar um humor especial.
ResponderExcluirAbraços,
Rosite Val.
E Rosite Val foi fundo! Valeu minha querida...a minha vida tem sido um palco iluminado e eu aproveito cada minuto disso...bjs
ResponderExcluirHilda, ótima matéria e entrevista. Parabéns!
ResponderExcluirProfessora Deolinda, ainda não tive o prazer de encontrá-la na escola, deixo aqui as boas vindas e agradeço por partilhar sua trajetória e experiência.
Até breve.
:)
Eu tenho um enorme orgulho de ser tio dessa NOBRE jovem por quem eu sempre serei um eterno testemunha de vida tão profícua, acompanho sua vida desde a infancia!!!Bjs!Tio Jesus.
ResponderExcluirOrgulho de ver o nome de nossa família brilhando através de você, prima! Sucesso! Beijos
ResponderExcluirPrima parabéns pela sua trajetória! Já pode escrever sua biografia (rsrsrsrssrs). Bastante orgulhoso por ter uma prima tão esforçada e guerreira como Clara Nunes (Meu Orgulho como atriz) sempre foi. Mais uma vez PARABÉNS!!!!!!!!!!! Beijos
ResponderExcluir