2 de janeiro de 2012

Malhação reproduz preconceito ao limitar papéis de atores negros

O ator Jonathan Azevedo (de boina) interpreta o personagem Fôjo.
Fotos: Rede Globo / Divulgação

[A reprodução deste texto por outros veículos é permitida, desde que haja a inclusão do crédito de fonte: Enoe Lopes Pontes e Marcela Alexandrino/ABAN]
Por Enoe Lopes Pontes e Marcela Alexandrino

Neste trabalho, visamos fazer uma breve análise de uma semana da telenovela Malhação (21/11 até 25/11), tendo em vista a personagem Fôjo, interpretado pelo ator Jonathan Azevedo. O nosso objetivo é examinar como uma personagem negra é retratada nesta trama, com base no livro e no documentário A Negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira, ambos de Joel Zito A. de Araújo.

A Negação do Brasil mostra como, durante a história da telenovela brasileira, houve uma escassez de papéis para atores negros, ou uma gama de personagens estereotipados e no cargo de serviçais. “Ao ator afro-brasileiro estão reservados os personagens sem, ou quase sem, ação, os personagens passageiros [...] que buscam compor o espaço da domesticidade, ou da realidade das ruas” (ARAÚJO, 2000, p.308).

Durante a história da telenovela no Brasil, a luta do movimento negro foi incessante. Ainda assim, depois de dez anos que A negação do Brasil foi publicado, a realidade ainda é muito complicada para estes artistas. Raras oportunidades são oferecidas, não há espaço para mostrar outros lados da vivência de uma família afro-descendente, que não seja o de remediados, muito menos há uma discussão forte em relação ao racismo. “O racismo brasileiro é representado da mesma forma que ele aparece na sociedade, como um tabu sempre escamoteado no discurso oficial e privado brasileiros” (ARAÚJO, 2000, p.309).

Taís Araújo interpretou a protagonista de Viver a Vida, mas seu papel decresceu
Pequenos avanços foram conquistados e, no ano de 2010, a televisão brasileira teve sua primeira protagonista negra em uma telenovela das 21 horas. Em Viver a Vida, de Manoel Carlos, a personagem Helena foi vivida por Taís Araújo. Mesmo que essa seja uma vitória, a personagem foi perdendo o foco, quando Luciana, vilã interpretada por Aline Morais, sofreu um acidente, tornando-se cadeirante. Toda a história se voltou para o problema da moça acidentada, que também foi tratada de forma rasa, sem mostrar os verdadeiros transtornos de quem possui necessidades especiais. De qualquer forma, a narrativa de Helena deixou de ser a principal e nunca a discussão étnica foi abordada com profundidade.

Na nossa análise, vimos que a esperança do autor Joel Araújo de que o espaço para personagens negras seja muito maior do que uma pequena cota cumprida está longe de ocorrer. Na telenovela Malhação, folhetim da Rede Globo direcionado aos adolescentes e jovens, às 17h40, temos Fôjo, interpretado pelo ator Jonathan Azevedo. Ele é o clássico malandro das favelas, apresentado nas novelas durante a história da televisão. Com gírias e interpretação caricatas, ele é o único jovem habitante do morro que tem destaque na narrativa. Os outros moradores da comunidade são brancos e falam com gírias, porém sem os exageros vistos em Fôjo.

Edvana Carvalho é a doméstica Aparecida. Fotos: Rede Globo/ Divulgação
Para completar o elenco negro da telenovela, existe Aparecida (Edvana Carvalho), empregada na casa de Nelson, vivido por Kadu Moliterno. A moça tem dois filhos, brancos. Ela e sua família são moradores da mesma favela que Fôjo. Em momento algum, no período que assistimos e pesquisamos, do dia 21 a 25 de novembro, a discussão em relação à “branquitude” dos garotos é abordada. Resta para a personagem o velho papel de empregada amiga dos patrões. Algo que lembra as “mamies”, mostradas em A negação do Brasil. Ainda que ela não possua o mesmo tipo físico, não deixa de ocupar a posição de serviçal preocupada com o patrão e que parece quase não ter vida própria.

Aparecida é ainda retratada como ignorante e sem educação escolar. E ela é a única que fala desmedidamente errado, o que não significa que deixa de ser esperta. A moça, no capítulo do dia 22 de novembro (ver descrição abaixo), defende o interesse financeiro dos filhos. Concluímos, por fim, que querem deixar claro que a mulher negra é somente esta: a da periferia, ignorante, porém cheia de esperteza.

Na análise, exporemos um relatório de cada capítulo, com comentários feitos enquanto víamos os capítulos. Em seguida, virá a discussão e reflexão feita após a cenas vistas.

Capítulos de Malhação: 21/11 – 25/11

Uma das festas realizadas na periferia cenográfica de Malhação
21/11: Existe um núcleo pobre na novela, que vive em uma comunidade. Nesta favela, está acontecendo uma festa. Fôjo convida uma menina branca para dançar dizendo: “Branquinha aqui no morro a gente adora!”. Enquanto ele é cheio de trejeitos e frases prontas, os outros garotos ao seu redor também falam gírias, mas sem afetações características do “negro malandro”.

O ator Grande Otelo
Esta personagem nos remeteu ao papel dado para Grande Otelo em Mandala. Desconsiderando o alcoolismo, a construção física e gestual é semelhante. Outras questões como o namoro de uma mulher mais velha com um garoto mais novo e namoricos de adolescentes são o maior foco na trama. A comunidade é somente mais um cenário para plano de fundo das histórias românticas.

Numa outra sequência, vemos Fôjo num boteco, com amigos da comunidade, discutindo finanças relacionadas ao lucro da festa. Ele é o único que fala de boca cheia e faz comentários grosseiros, ou seja, somente ele é mal educado. Para completar, na favela da novela, só Fôjo fala algumas palavras erradas. A mais marcante foi “espricra”. Para completar, Moisés, que parece ser o líder comunitário local, dará apenas 3,3% do lucro ao rapaz. O garoto nem sabe fazer contas na calculadora, mas desconfia que há algo errado. Ainda assim, covarde e medroso, Fôjo não discute e nem luta para ganhar mais.

Ao fim do capítulo, não vemos problemas familiares ou de relacionamentos com Fôjo. Enquanto todas as outras personagens possuem massivamente conflitos.

22/11: Fôjo está arrumando a comunidade depois da festa e seus amigos, Dieguinho e Jeferson, chegam. Os meninos são da banda que tocou na comemoração, além de serem da favela. Fôjo se diz o "relação pública" deles. Ao falar sobre o valor que cada um receberá, são os garotos que dizem que aquela porcentagem é injusta. Fôjo fala que também achou meio estranho. Ou seja, a única personagem negra da trama é pobre, burra e covarde, afinal ele pede aos companheiros que vão lá reivindicar com Moisés e ainda que eles não contem que foi ele quem deu a notícia sobre o dinheiro.

Enquanto os músicos vão falar com Moisés, Fôjo fica no fundo da cena, em segundo plano, desfocado, olhando de longe, com cara assustada. Apesar de tentarem, não conseguem convencer o patrão. Acontece depois algo positivo para uma personagem negra, mas que não foi com a escolhida por nós. Aparecida, mãe de Jeferson e Dieguinho, senta e exige que os três rapazes recebam o valor justo do trabalho realizado. A mulher tem seu pedido concedido, por ter falado de maneira firme e ter encarado o chefe da comunidade. O pior do desfecho desta história é que Fôjo continua “paparicando” Moisés, mesmo depois da injustiça, demonstrando mais uma vez covardia e falta de caráter na constituição desta personagem.

Até os capítulos assistidos, Malhação nunca toca no fato de Aparecida ter dois filhos brancos, muito menos passa perto de abordar questões raciais. A sensação é de que é óbvio que todo afro-descendente é como Fôjo e nada mais precisa ser dito. O folhetim discute ainda temas como o alcoolismo, relacionamento entre uma mulher mais velha com um garoto mais novo e sobre os cadeirantes. Nenhuma destas temáticas é tratada com profundidade, porém são expostas como existentes, o que traz a possibilidade de haver uma problematização destes assuntos.

Dificuldades dos cadeirantes são mostradas em cenas de Malhação
23/11: Neste capítulo Fôjo não aparece. Neste dia, são mostrados inúmeros relacionamentos amorosos, além de conflitos entre pais e filhos.

24/11: Fôjo chega ao boteco da comunidade, dançando e cantando, com roupas de grife. Cheio de malandragem, propõe uma nova idéia para que ele possa faturar mais dinheiro com o sucesso da banda: ter dançarinas.  A sugestão veio dele, mas depois ele volta ao lugar de “burro” e nem parece mais que a proposta foi feita pelo garoto.

Este foi mais um capítulo sem nenhuma discussão sobre a questão do negro. Nenhuma outra personagem apareceu e a única que aparece mais está no velho padrão estereotipado das personagens negras.


25/11: Neste dia, especificamente, ocorreu uma situação curiosa, que não é relacionada à personagem analisada, mas que é importantíssima para perceber como o racismo é muito real, embora esteja camuflado. Débora e Ziggy, dois adolescentes, conversam em uma lanchonete. Ziggy pede um sanduíche e vemos que a atendente é negra. Quando ela traz o lanche, diz: “pronto senhorzinho” e sai como se servir e remeter seu trabalho à escravidão fosse normal. O que fica claro nesta fala é: “estou no meu lugar, o de serviçal, senhorzinho”. É inacreditável que uma cena como esta tenha ido ao ar.

Em relação a Fôjo, neste último capítulo avaliado não foram apresentados parentes, nenhum par romântico, nada que traga humanidade para a personagem. A última cena dele, nesse dia, é quando é escolhida a dançarina da banda. Tam Tam é o nome dela. Uma dançarina negra que traz outros estereótipos de personagem negra. A moça é vulgar e só sabe fazer uma coisa: sambar.

Cena de Malhação com o personagem Fôjo
Conclusões

Analisando o discurso e a explicação feita por Joel Zito Araújo em A Negação do Brasil é realmente notável o pouco espaço dado aos negros nas telenovelas brasileiras. Os afro-descendentes não têm como se ver positivamente. Resta para eles, em sua maioria, acreditar no discurso implantado, afinal, a televisão exerce um grande poder na mentalidade das pessoas.

Conforme Araújo, [...] "considerando as duas últimas décadas, os anos 80 e 90, um período de ascensão do negro na dramaturgia da teleficção, de 98 novelas produzidas pela Rede Globo (excluindo aquelas que tiveram como temática a escravidão) não foi encontrado nenhum personagem negro em 28 delas. [...] Uma demonstração contundente de que a telenovela nunca respeitou as definições étnicos/raciais que os brasileiros fazem de si mesmos, num país que tem cerca de cinquenta por cento de sua população constituída por afro-descendentes" (ARAÚJO, 2000, p.305).

Nelson Xavier, na minissérie Tenda dos Milagres
A realidade das telenovelas é essa. Durante sua história tem-se mamies, empregadas fofoqueiras, serviçais/braços direitos, jagunços e favelados. No máximo, ocorrerão casamentos inter-raciais como salvação para o negro, ou famílias com a cultura branca realizando preconceito as avessas. Isso ocorre em novelas Carinhoso (1974), Vejo a lua no céu (1976), Sem lenço, sem documento (1976), Terra do sem fim (1982), Livre para voar (1984), Roque Santeiro (1985), A próxima vítima (1995) e Por Amor (1997). A única exceção feita pelo autor é a minissérie Tenda dos milagres (1985), que “fez a defesa aberta da construção de uma identidade racial mestiça”, (ARAÚJO, 2000).

A esperança de um avanço nas telenovelas, ressaltada por José Zito Araújo em seu livro, ainda não aconteceu. O livro A Negação do Brasil tem dez anos e pouco foi mudado. O processo é lento, mas se essa luta não for esquecida, o futuro dos atores negros e dos telespectadores que neles se espelham será positivo. O que não pode mais acontecer é a insistência de pôr personagens como Fôjo numa telenovela do século 21. Foram muitos anos de batalha do movimento negro que não podem ser desperdiçados.

Além disso, existe uma responsabilidade social da televisão. Como explica Vera de Oliveira N. Lopes, no texto A Lei da Selva, a TV não está somente no âmbito do privado, ela também presta um serviço público, afinal a concessão dos canais é dada pelo governo. Conforme esse raciocínio, o conteúdo televiso precisa educar os telespectadores.

Em A TV Pública, Laurindo L. Leal Filho, explica que é direito de todos que, nas emissoras de canal aberto, exista programação educativa e de qualidade cultural. Ao retratar o negro de forma errônea e pré-conceituosa, os diretos dos cidadãos de serem educados e conscientizados pela televisão é tirado de suas mãos.

“Será que nos próximos anos a telenovela brasileira estará assimilando, com mais naturalidade e regularidade, o talento, a personalidade e a aparência física do ator negro [...]?” (ARAÚJO, 2000, p.310). Fica, então, esta pergunta para nós telespectadores brasileiros.

Jonathan Azevedo, Edvana Carvalho, Pedro Bernardo ( Dieguinho) e
Douglas Sampaio ( Jefferson). Foto: Divulgação / Rede Globo
A conclusão da avaliação de uma semana da telenovela Malhação foi mais decepcionante do que imaginávamos. O enredo é completamente atrasado, preconceituoso e discriminatório. Não há nenhum negro na escola, nem em famílias abastadas ou com a inteligência em destaque. É quase um retrocesso no caminho trilhado por tantos atores negros que supostamente abririam espaço para as novas gerações. O folhetim pode ser o menos importante da Rede Globo, mas é este o produto consumido pelos futuros adultos que provavelmente imprimirão o mesmo comportamento, ideologia e discriminação vistas na telenovela.

Malhação tem público de faixa etária muito jovem, indivíduos em construção de personalidade e caráter que vêem na televisão a mesma concepção de afro-descendentes que seus pais e avós. A mentalidade permanece, de uma forma ou de outra, igual, mesmo que mascarada ou somente no inconsciente. Resta esperar a lenta evolução da personificação do negro na telenovela e nunca deixar a luta esmorecer.

Referências

ARAÚJO, José Zito. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Senac, 2000.

LEAL FILHO, Laurindo Lalo. A TV Pública. In: BUCCI, Eugênio; HAMBURGUER, Esther (Orgs.) A TV aos 50: a TV brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000. p.153-166.

LOPES, Vera de Oliveira Nusdeo. A Lei da Selva. In: BUCCI, Eugênio; HAMBURGUER, Esther (Orgs.) A TV aos 50: a TV brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000. p.167-182.

3 comentários:

  1. Muito interessante a matéria. Há pontos sobre a maneira em que os negros são mostrados na tv que ainda não havia notado. Às vezes parecem sutis e saem despercebidos, mas quando apontados se tornam gigantes, visíveis.

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  2. Depois de quase um ano de escrito eu refleti sobre uma coisa que ouvi recentemente: "esse tema é batido!"
    Acho engraçado esse comentário e já pensando nisso procurei sempre exemplos atuais. Afinal, se o assunto é tão batido, porque ele ainda acontece??!!!

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